Nascida em Envendos, uma aldeia do concelho de Mação, na Beira Baixa, foi aí que passou toda a sua infância, no seio de um agregado familiar numeroso: “sou a terceira de seis irmãos – cinco raparigas e um rapaz. O meu pai tinha um negócio de transformação de presunto, azeitonas e azeite. Estive lá até à minha quarta classe”. A partir daí, segundo conta, não havia oportunidade de prosseguir estudos. “Os meus pais decidiram que, quando concluíssemos o ensino possível em Envendos, iríamos para um colégio interno. As minhas duas irmãs mais velhas foram para Santarém e, quando chegou a minha vez, também fui. Só voltávamos nas férias e, normalmente, só tínhamos uma visita por mês”.
Quando chegou a altura do quarto irmão, as coisas complicaram-se: “já não havia orçamento familiar e levantou-se também a questão de o colégio de rapazes ser em Abrantes, com toda a gestão logística que isso implicava”. Assim, a mãe mudou-se para Oeiras com os filhos que já tinham acabado o respetivo ciclo e, à medida que os outros o faziam, mudavam-se também. “Fiz lá o liceu. Desde sempre disse que queria ser educadora de infância, mas os meus pais não aceitaram muito bem. Na altura não era curso superior e eles puseram então, como condição, que eu tirasse ao mesmo tempo uma Licenciatura”.
Inscrevendo-se na Associação de Jardins-Escola João de Deus, faltava decidir que Licenciatura seguir: “gostava de Ciências e, como a Faculdade de Ciências era próxima, fui tirar Biologia. Acabava as aulas na Estrela e descia para a Rua da Escola Politécnica”. Apanhou o grande incêndio de março de 1978, depois do qual as aulas passaram a decorrer provisoriamente na Avenida 24 de Julho. “Não me arrependo de ter ido para a Faculdade de Ciências, foram aprendizagens muito importantes e tinha um grupo de colegas muito próximo e divertido. Entretanto acabei o curso de educadora de infância e fui trabalhar. Ainda tentei continuar Biologia, pelo menos para ter o Bacharelato completo, mas as cadeiras que existiam em pós-laboral eram muito poucas. Fiz as que havia e, quando já não tinha mais alternativas, acabei por desistir”.
No colégio onde estava a trabalhar, em Oeiras, Lourdes Mata conta que não tinha os materiais e instrumentos para desenvolver adequadamente a metodologia que aprendera na sua formação; ao mesmo tempo, “comecei a questionar se aquela era a minha forma de pensar a Educação. Uma das colegas tinha o sonho de tirar psicologia e desafiou-me a ir também, para aprender mais sobre desenvolvimento infantil e aprendizagem, com o fim de conseguir mudar a minha prática”. Inscreveu-se no Ispa em pós-laboral que ainda funcionava na Feira Popular. No ano seguinte conseguiu um trabalho no Algarve, levando-a a frequentar o polo de Beja, “onde fui aluna durante um ano. Só funcionava ao fim de semana. Saía de Montechoro apanhando o comboio, depois a automotora… Ficava sexta e sábado a assistir às aulas, e depois regressava”. No ano seguinte, já de volta a Lisboa, ficaria a trabalhar no Jardim de Infância da Manutenção Militar, “perto do Ispa, que se mudara recentemente para a Rua Jardim do Tabaco. Continuei o curso em pós-laboral, sempre dizendo que a minha vinda para Psicologia foi apenas para saber mais, que não largaria nunca a educação de infância”.
Quando estava a concluir a Licenciatura, “eu e alguns colegas, entre os quais o Professor Francisco Peixoto, resolvemos formar uma cooperativa, o ICEOP – Instituto Cooperativo de Estimulação e Orientação Psicopedagógica. Candidatamo-nos ao Instituto de Emprego e Formação Profissional com um projeto ambicioso: a construção de um edifício para Jardim de Infância. Enquanto não recebíamos o financiamento, alugámos um consultório nos Anjos que era a nossa sede; tínhamos avenças com várias instituições e organizávamos muita formação para professores e educadores. Tínhamos também estabelecido uma parceria com a Câmara de Sintra para a cedência de um espaço no qual montaríamos um Jardim de Infância… Não consegui conciliar a atividade profissional de Educadora com estes desafios todos, pelo que acabei por largá-la”. Atrasos na implementação do projeto e escassez de financiamento acabaram por inviabilizar o nosso projeto. Contudo, nessa mesma altura “abriu no Ispa uma vaga para assistente da Professora Margarida Alves Martins, na cadeira de Psicologia Educacional. Concorri e foi assim que entrei para o Ispa como professora”.
Esta nova posição trouxe para Lourdes Mata a necessidade de fazer o mestrado em Psicologia Educacional, que na altura era lecionado em parceria com a Universidade de Aix-en-Provence: aí, “o maior desafio foi ter que escrever uma tese e defendê-la em francês, que só tinha tido no liceu”. Começou com a Professora Margarida Alves Martins a investigar sobre os conhecimentos e apropriação precoce da linguagem escrita em crianças pequenas: “foram anos de muita aprendizagem”. No doutoramento, realizado na Universidade do Minho, não abandonou esta temática, mas o foco principal passou a ser o papel da família “naquilo que chamamos de literacia familiar – práticas de literacia informais, do quotidiano, que podem ajudar a promover os conhecimentos e as competências de linguagem escrita das crianças naturalmente. Ao longo da minha carreira fui, gradualmente, alargando este âmbito da família para o processo de educação geral”.
Falando do estado atual da Educação de Infância, Lourdes Mata argumenta que “está mais clara e fundamentada, com investigação, a relação positiva entre os contextos de educação de infância, os anos de frequência e o sucesso escolar posterior. Parece-me que já se começou a perceber que não é só um sítio para entreter crianças”. No entanto, alerta, “existe uma interpretação errada desta qualidade. Há quem pense que passe por ensinar precocemente as coisas que vão acontecer na escola: letras, números… Passa muito mais por dar a oportunidade de explorar, refletir, ter espaço de diálogo e interação com os colegas desde pequenos, de brincar, de planear e desenvolver projetos em conjunto e de aprender desta forma participativa”. Tudo isto exige, ou implica, um conjunto de competências que se podem desenvolver desde muito cedo nas crianças “e são essas que, mais tarde, promovem até alguma autonomia e responsabilização; são essas que, a meu ver, devem ser desenvolvidas no jardim de infância. Naturalmente, os outros conhecimentos e aprendizagens vão surgindo”.
Ao longo da sua carreira Lourdes Mata considera que, indubitavelmente, “a investigação que fiz foi muito importante para o meu crescimento e o meu pensamento. Aquilo que neste momento me faz sentir mais realizada é algum efeito que o trabalho que desenvolvi possa ter, direta ou indiretamente, para a qualidade da abordagem pedagógica em contexto de Educação de Infância”. Este contributo decorre, em parte, da sua colaboração, que já vem desde há muitos anos, com a Direção-Geral da Educação (DGE). Em especial, “há uns anos, depois de um parecer e de uma comissão que integrei, pediram-me para elaborar uma brochura para apoiar os educadores de infância na sua abordagem à linguagem escrita. Mais tarde fui convidada, pela Professora Isabel Lopes da Silva, para a equipa que ia fazer a revisão das Orientações Curriculares para a Educação Pré-escolar (OCEPE). Estas colegas têm-me ajudado a crescer imenso e a mudar e evoluir na forma como penso a educação de infância. Apesar da revisão já ter saído em 2016, mantemo-nos em contacto e todos os anos temos escrito algum artigo ou algum texto muito direcionado para apoiar a sua implementação”.
Para a divulgação das OCEPE, Lourdes Mata e as restantes autoras haveriam de, a convite da DGE e pela Associação de Profissionais de Educação de Infância, percorrer o país a “esclarecer que grandes mudanças estavam nestas orientações e as diferenças em relação à versão anterior. Tenho presente, de todas essas sessões, as salas e auditórios sempre cheios e a abertura e disponibilidade enorme por parte dos educadores para se apropriarem dessas alterações e compreenderem como é que poderiam implementá-las na prática”. Na sequência desta revisão das OCEPE, a DGE considerou que havia a necessidade de organizar outros documentos que apoiassem os educadores na prática. “Foi nesse âmbito que surgiu a brochura mais recente, que escrevi em conjunto com a Isaura Pedro, sobre o envolvimento e participação das famílias na educação, editada em 2020”.
Outro aspeto que contribui para a realização profissional de Lourdes Mata é “a formação inicial que temos no Ispa de educadores e professores; integrar o grupo que pensou na estrutura curricular e na sua implementação foi muito desafiante”. Quando se pergunta se tem saudades de ser educadora, confessa que “às vezes tenho, sempre tive um pouco. Contudo, neste momento estou bem, pois estou próxima da prática”.
Numa reflexão mais introspetiva, “acho que o trabalho que faço em conjunto com os meus colegas da Psicologia e da Educação me ajuda a ir refletindo e crescendo. Não se fique com a ideia que nesta altura já não se cresce. Estamos sempre a aprender e em desenvolvimento – e isso só se consegue em parceria, não se faz sozinho. Ao longo do meu percurso, tive a sorte de encontrar e trabalhar com as pessoas certas nas alturas certas, que me ajudaram a evoluir e a ser quem sou hoje”.
Já em relação aos seus alunos, Lourdes Mata deseja que “tenham sempre capacidade de refletir, de dialogar, de argumentar e explicar o seu ponto de vista. Todos temos que fazer o nosso caminho, tomar as nossas opções, para encontrarmos a melhor forma de atuar enquanto profissionais. Acho que essa é a mensagem principal: compreendam por que fazem, porque querem fazer, como fazem e saibam para onde querem ir”.
O que é, para Lourdes Mata, ser Ispiana?
“Já estou cá há 30 e muitos anos… comecei como aluna e agora sou professora. Acima de tudo, acho que é algo muito forte que nos liga e que passa por pensar, questionar, refletir para crescer. Passa também por compreender que isso se faz em conjunto: o espírito Ispiano constrói-se nas relações e no ambiente positivo. Neste momento, temos uma casa muito maior, somos muitos, mas acho que não se perdeu esta relação de proximidade e o pensar o outro enquanto também Ispiano”.