É assim que Maria Emília Marques descreve o seu trabalho, com uma carreira que já conta mais de quatro décadas. O seu encontro com a Psicologia surgiu “no verão quente de 1975. Tinha lido um livro intitulado Verdades e Mentiras da Psicologia, ou algo do género, sem saber o que aquilo era e achei muito estimulante. Na altura, quando deixávamos o liceu havia a cultura de sermos nós a tratar de tudo, não os pais. Indo para a faculdade, era a nossa maturidade. Saí de casa, ia para a Faculdade de Letras de Lisboa (FLUL); o autocarro parou no Marquês de Pombal, desci e não apanhei o próximo para a Cidade Universitária. Fui à procura de um endereço que tinha visto nas Páginas Amarelas: Instituto Português de Psicologia, na Rua Braancamp”. Quando lá chegou, não encontrou nada e foi redirecionada para a Rua da Emenda, onde acaba por se matricular no Ispa.
Na altura, “o Ispa vivia uma situação jurídica confusa. Tinha sido criado pela Confederação Nacional dos Institutos Religiosos e a Federação Nacional dos Institutos Religiosos Femininos; com o 25 de abril, afastaram-se e ficámos em autogestão, com um conselho diretivo e pedagógico com participação de alunos. As decisões eram tomadas na Assembleia Geral, de braço no ar – era tudo muito participado”. As instalações ficaram pequenas para o elevado número de alunos que entraram em 1974 e 1975, pelo que o Instituto se mudou para um edifício do Ministério do Trabalho que ficava em frente. Como vizinhos, tinha uma sede do Partido Socialista, “que não sei se ainda lá está. O tal edifício que ocupámos não tinha acabamentos e era muito frio; conseguimos que o Ministério da Educação nos cedesse umas instalações na Feira Popular”.
No início de 1976, é criada a Faculdade de Psicologia; foi constituída uma comissão instaladora, na qual estavam integrados dois membros do Instituto. A ideia era integrar o Ispa nesse curso de Psicologia, o que levaria à sua subsequente extinção. Nunca chegou a acontecer. “A razão para tal continua um enigma”, conta Maria Emília Marques. Esta situação “levou a que houvesse uma suspensão letiva durante algum tempo”, resultando no prolongamento do primeiro ano letivo em seis meses. “Percebemos depois que não íamos entrar e recomeçamos aí a nossa vida e as nossas aulas, levando a que tenha terminado o curso em dezembro e não em junho, como é habitual. No entanto, a ideia da extinção do Ispa manteve-se. Durante três anos, não abriu inscrições; quando os alunos que entraram em 1975 tivessem concluído o seu curso, fecharia. Houve uma forte contestação desta decisão, uma substituição da Direção e o Instituto reinicia a sua atividade regular em 1979, com a reabertura do 1.º ano. Participei nesse movimento como membro da direção da Associação de Estudantes e como representante dos estudantes na Direção”, conclui.
Durante o curso, Maria Emília Marques revela ter vivido “um clima muito rico em termos de debate, o que me levou a desenvolver um sentido crítico muito grande”. Havia espaço para coisas mais tradicionais e mais modernas, mais sociais e mais abstratas. “Podemos, por vezes, ouvir as coisas e arrumá-las algures, mas como vivíamos em ambiente de diálogo, debatíamos e tentávamos encontrar soluções, respostas. Desde cedo eu, como muita gente da altura, percebi que era clínica que queria fazer”. O programa curricular que teve enquanto estudante era marcado por ideologias: “em vez de aprender testes psicológicos de avaliação, discutíamos a sua função social, como os testes eram discriminatórios”; ao mesmo tempo, em 1975/76, “havia já coisas muito americanas: aprendizagens sobre programas, sobre como tratar, curar, de forma mais mecânica. Estes contrastes foram, para mim, bastante estimulantes”. Em 1980, depois de concluir os cinco anos de formação, Maria Emília Marques rumou a Paris durante dois anos, à Université Paris V René Descartes. “Muitos foram os que o fizeram, das áreas de Clínica, Educacional e Social e das Organizações – voltámos como docentes para o novo Ispa”.
Na Cidade Luz “desenvolvo um grande interesse nas provas projetivas. Havia um interesse que se tinha instalado numa formação constituída nos timings certos e que era altamente fascinante: a leitura que se faz das provas projetivas é a mesma que se faz da clínica no geral”.
Esteve envolvida no primeiro mestrado que abriu no Ispa, em 1989, “de Psicopatologia e Psicologia Clínica, em parceria com a Paris X Nanterre”. Aí, já as questões da psicanálise se haviam imposto e, depois da formação que teve, Maria Emília Marques confessa que “era incontornável e sabia que ia aprofundar essa via. Fiz a minha análise pessoal durante 13 anos e a minha formação na Sociedade Portuguesa de Psicanálise, já depois de ter ido um terceiro ano para Paris, em 1985”.
Começou a sua atividade de docência na Psicopatologia da Criança, “nos testes, porque era aquilo que tinha sido a minha formação em Paris. Gradualmente, fui-me estabilizando mais nas técnicas projetivas e numa certa maneira de fazer a avaliação psicológica, digamos de uma forma mais coerente, porque foi esse o processo e o produto da minha tese de doutoramento: conceber a prática clínica e a avaliação psicológica de forma integrada”. Apesar da área de avaliação ser dominantemente a sua, revela que a experiência mais interessante que teve a nível de ensino foi há cerca de 10 anos, quando “gostei particularmente de dar duas cadeiras que já estão extintas, Mitos e Psicanálise e Etnopsicanálise”.
Em 2009, quando dava o Seminário de Dissertação de Projeto de Doutoramento, “houve uma série de estudantes, que trabalhavam em escolas das periferias, que manifestaram interesse em poder falar daquilo que lá acontecia com populações migrantes, sobretudo miúdos dos PALOP, que têm a vida muito difícil”. Aí, recorda Maria Emília Marques, “fui repescar um interesse já antigo com que nunca tinha feito nada, o da etnopsicanálise. É justamente um domínio que se expandiu a partir de Freud, começando-se a desenvolver questões à volta da cultura e, sobretudo em anos mais recentes, a fazer muito trabalho com populações migrantes”.
Formou-se, pouco depois, “um grupo de reflexão que juntava também antropólogos e outros convidados que trabalhavam em territórios e domínios diversos. Vinham, por exemplo, colegas do Hospital Amadora-Sintra discutir casos connosco, com particularidades clínicas que sabiam que trabalhávamos. Mantivemos esta atividade regular até que em 2014 abre um concurso no Fundo para o Asilo, a Migração e a Integração (FAMI) e decidimos concorrer – aí, tivemos que criar um nome e nasceu o Centro de Etnopsicologia Clínica”. A sua missão passa por procurar dar “respostas clínicas com este pendor transcultural. Acho que posso mesmo dizer que somos os únicos no país que têm esta particularidade”.
Os settings não são os habituais, nem as consultas nem alguns dos modelos de intervenção, como “estivemos agora com os Médicos Sem Fronteiras, ou trabalhar indo a uma escola fazer mediação quando há bloqueios de um/a menino/a, que encontra dificuldades junto dos professores. Há situações valiosíssimas e exemplos fascinantes do ponto de vista do que se consegue fazer com o envolvimento de todas as partes: famílias, crianças e professores”. Este trabalho exige, normalmente, “o valioso contributo de antropólogos e mediadores culturais, pessoas que partilham ou são da mesma cultura e nos ilustram coisas que, não sendo iguais à nossa, podemos desvalorizar. Saber o que comem e como comem, a relação com as divindades, com a natureza. Coisas tão simples como estas são questões muito diferentes de local para local”. Este FAMI, como salienta Maria Emília Marques, “já é o terceiro. Sempre que concorremos, pela particularidade do nosso trabalho, temos sido subsidiados pelo Alto Comissariado para as Migrações. Este em que estamos agora é com refugiados requerentes de asilo e menores não acompanhados, portanto temos circulado com realidades atuais muito difíceis”.
Aqui, “mais uma vez surge a convergência dos interesses da clínica com os da psicanálise, e esta questão que sempre foi minha: a possibilidade de enriquecermos a nossa visão para a nossa prática com contributos bem refletidos. Não é fazer um potpourri. Os antropólogos dizem-nos coisas bastante interessantes. Uma das cadeiras que mais gostei no Ispa, no primeiro ano, foi Antropologia Cultural. O livro que acho que mais me marcou, não sendo de cabeceira porque não os tenho, chama-se La Violence et le Sacré, de Rene Girard, sobre a formalização da violência. Sempre tive estes gostos por coisas de cariz mais sociais e antropológicos”.
Hoje em dia, Maria Emília Marques confessa que “uma coisa que me tem trazido muita perplexidade é utilizar Rorschach com populações migrantes, obviamente com um tradutor. Aquilo que tenho apanhado é qualquer coisa de extraordinário. Espero, brevemente, mostrar um bocadinho do que a clínica projetiva pode clarificar sobre fenómenos que, normalmente, não são lidos numa lógica de avaliação stricto sensu – mas que, se tomados como narrativas, podem ser compreendidos”. Elaborando com um exemplo, refere que, “com muita frequência, nestas populações em grande sofrimento leio um Rorschach com duas aceções. Uma, a habitual, é uma técnica, um método, vou atrás daquilo que é o comum; depois, vou ler outra vez para ver o que é que contam a mais – e todos contam uma história”. Especifica o que quer dizer com o caso de um menor vindo do Afeganistão, “que dá as respostas habituais, mas depois conta a sua história, eles que habitualmente não querem contar. É difícil; são histórias tremendas e temem voltar às memórias, portanto tem que se lhes dar tempo até ganharem confiança para contar o que têm para contar”. No último dos 10 cartões “ele dá a solução. Vem indicando o sofrimento, o mal-estar, os agrados e desagrados, e no fim faz uma combinação genial que é como tudo no fim se compõe. Se se conseguir ligar o passado com o presente e projetar o futuro, não há psicólogo que fale tão bem. A maior parte dos psicólogos não falam disso; falam do risco, do perigo. Portanto, esta é a minha forma de fazer clínica: ouvir as pessoas. Elas sabem sobre elas, desde que as deixemos falar como elas conseguem falar”.
Perguntamos o que acha do estado atual da Psicologia. Maria Emília Marques não hesita: “hoje em dia há tendência para uma prática centrada em diagnósticos muito precisos, há poucas categorias: nos adultos toda a gente falta de ansiedade, ataques de pânico, insónias e depressão, nas crianças não se tanto nestes termos, mas de défices de atenção e dislexia outra vez, que no meu tempo já tinha acabado e que voltaram agora”. Em suma, acredita que os sintomas não esclarecem ou não contêm o que se passa com a pessoa. “Quando alguém nos diz que está deprimido, eu tenho que saber o que é que isto quer dizer. Não posso aceitar um enunciado; é o quê? Porquê? Para quê? Isto porque as pessoas também precisam de saber, temos de passar para além deste nome, que acaba por ser muitas vezes uma ocultação, um encobrimento. Se as pessoas têm uma queixa, devem queixar-se, mas eu preciso de saber do que se queixam”.
No caso específico da depressão, esclarece que “as pessoas chamam depressão a coisas muito diferentes. Há a que é feita de um grande abatimento, de uma incapacidade em se mover, com sofrimento. Agora, se está com uma situação instável de trabalho, as relações não funcionam… isto não é uma depressão, pode ser, por exemplo, frustração. Há uma diferença entre as pessoas se sentirem frustradas e insatisfeitas, sem saber para onde vão, e este abatimento. Quando vejo uma depressão a sério eu não confundo, descrevem-me estados que não consigo imaginar: é um afundamento até com tradução corporal muito evidente. Por isso é que digo que debaixo destes nomes está recoberta uma grande diversidade. O meu trabalho como clínica é saber isto, mas sobretudo ajudar as pessoas a identificar onde é que lhes dói e o que fazer com isto. O nome simplifica e facilita muito, muitas vezes a medicação. Coincidentemente estas categorias estão colocadas numa relação direta com os fármacos: antidepressivos para a depressão, ansiolíticos para a ansiedade, insónias as coisas para dormir, estabilizadores de humor para os bipolares. Acho que a Psicologia fez um grande trabalho para se distinguir da Psiquiatria, criou distanciamento e modelos próprios, formas de olhar distintas, só para voltar a assumir estes termos e a estar enfeudados no discurso médico e sintomático”.
Para ilustrar a diferença do trabalho da Psicologia, Maria Emília Marques argumenta que o trabalho do seu grupo (CEC/Ispa) com os Médicos Sem Fronteiras “foi muito bem recebido nos bairros porque saímos daqui, no sentido em que pudemos pensar com as pessoas o que é que as aflige, o que é que as preocupa. Foi essa a proposta e houve uma excelente adesão com este nosso olhar, em populações desfavorecidas e culturas bastante distintas, de ciganos a guineenses, mas tivemos que sair desta conversa da ansiedade e depressão e perguntar: ‘fale-me de si’”. É tudo uma questão de “tratar as pessoas como uma categoria. Antes fazia uma vida muito tranquila no consultório, hoje em dia já cheguei a dar consultas em vão de escada e até fiz reuniões no parque de campismo de Lisboa. Saí da minha zona de conforto e é muito enriquecedor. Há muitas dimensões que aprisionam as pessoas, como as questões do SEF, autorização de residência, situações muito precárias economicamente com distanciamentos familiares penosos, são situações muito diferentes daquilo que é a minha clínica privada”. Confessa também que, apesar de se preparar a priori para estes relatos, “já me aconteceu estar em situações que sinto que a parede está à minha frente, a vir contra mim; as pessoas estão de tal maneira aflitas com a vida delas que acho que eu própria acabo por sentir este fechamento que sentem. Há situações muito diferentes e para as quais é necessária uma ajuda consertada em termos das repostas possíveis; por isso é que cada vez mais encontro vantagens num trabalho transdisciplinar – como psicóloga, não me posso propor a fazer coisas que não sei fazer, que caem no campo das assistentes sociais, por exemplo”.
Falando no que não sabe fazer, “há uma fórmula que uso: só paro de procurar porque tenho limites à minha capacidade de entender; não paro porque o outro é limitado ou porque se revelou inteiramente. Paro porque tenho limites, não sei fazer mais, não sei procurar mais. Imputo a mim mesma a limitação, no sentido em que é sobre isso que tenho que trabalhar”.
Nesta base, Maria Emília Marques afirma, no seu tom calmo característico, que “estou confortável com a minha própria identidade. É uma identidade que acho que ainda está em movimento, não é estável: ainda não cheguei ao fim nem estou estacionada. Continuo a aprender e isso reverte sempre para o meu trabalho; enquanto conseguir manter este espírito, trabalharei. Se perder a curiosidade, o desejo de saber, aí vou-me reformar – é melhor ir plantar flores, ou qualquer coisa. Aquilo que me move não é um lugar confortável ao qual cheguei; o que me move é um lugar sempre desconfortável porque ainda não sei, porque ainda não cheguei. O não saber é a semente do método. É porque eu não sei que estou nesta tentativa de procurar saber. Se me traz angústia? Não – angustiava-me era saber tudo.
O que é, para Maria Emília Marques, ser Ispiana?
“Como qualquer coisa na nossa vida, mesmo na relação connosco próprios, passamos por várias fases. Esta ideia de que pertencer a uma família, ou à instituição onde me formei e o único sítio onde tive atividade profissional é uma coisa estável uma vez atingido o patamar, não existe. Para mim, como acho que para a toda a gente, em qualquer condição da vida, ser qualquer coisa ou pertencer implica rearranjos sucessivos. Portanto, nesta altura posso dizer que tenho passado por diversas transformações afiliativas e identitárias. Mais que isto não consigo dizer!”