Estudos sobre os malefícios do álcool existem em abundância – mas porque não estudar os efeitos positivos do vinho na consciência? Foi esta a questão que, num bar de vinhos de Alfama, Rui Miguel Costa colocou, “numa conversa com o Marc Wittmann, investigador Institute for Frontier Areas of Psychology and Mental Health em Freiburg e o Arlindo Madeira, investigador da Faculdade de Turismo e Hospitalidade da Universidade Europeia”.
“Sendo o álcool, e o vinho, das substâncias psicoativas mais consumidas à face da terra, é impressionante a falta de literatura sobre os seus efeitos positivos. Tem que haver uma motivação baseada nestes, que ultrapassam de longe os problemas, para influenciar a decisão de beber, algo pervasivo na sociedade”, explica o investigador do William James Center for Research. Adianta ainda que isto se deve “a todo um paradigma um bocado puritano que existe na ciência; sendo a ciência muito influenciada pela cultura anglo-saxónica, em que os EUA foram o único país ocidental a ilegalizar o álcool – há, de facto, uma fortíssima repercussão e ambiguidade/ambivalência” em relação ao tema.
O que é estar bêbedo? Falamos em “estar um bocado tocado, alegre… usamos estas expressões para definir vários graus de interferência do álcool no nosso sistema nervoso, mas isto não diz nada. Não diz rigorosamente nada sobre o que está a acontecer à consciência durante esse período de intoxicação. Não define a alteração”.
Durante essas mesmas conversas que levaram à condução deste estudo, percebeu-se que a investigação sobre os efeitos do álcool contrasta drasticamente com a do uso de psicadélicos para efeitos terapêuticos. Rui Costa explica que existe um grande interesse por parte da neurociência e da psicologia clínica, e a prova disso é a literatura dos últimos 10 anos sobre os psicadélicos, maioritariamente positiva em relação aos mesmos: é “o tal paradoxo. Neste momento é raro encontrar um artigo que fale mal dos psicadélicos, dos perigos – só se fala das vantagens. Isto tem tudo muito que ver com questões culturais, políticas, com o momento que vivemos. Também já existe uma tradição longa de perceber exatamente quais são as alterações de consciência causadas pelos psicadélicos. Há questionários que foram desenvolvidos para avaliar estados alterados de consciência. Na prática são usados para testar os efeitos estas substâncias, mas na verdade podem ser utilizados para alterações de consciência independentemente do que as induz”.
Assim, “a ideia foi: por que não usar uma metodologia tipicamente usada com os psicadélicos, com o vinho tinto? Onde é que vamos fazer o estudo? Tipicamente estes estudos fazem-se em laboratório. Isto traz vantagens: melhor controlo de variáveis externas, uso de placebo, mas é provavelmente muito pouco realista. O efeito do álcool – aliás, o efeito das substâncias psicotrópicas no geral – é altamente influenciado pelo ambiente; da pouca literatura que há sobre os efeitos positivos do vinho tinto, há investigação a mostrar que se se der uma dose de vinho num laboratório e num sítio onde se habitualmente se serve vinho, o prazer é muito maior no segundo”. Rui Costa adianta que foi daqui que adveio a necessidade de um design naturalista: “este bar de vinhos aqui em Alfama tem as condições certas: pequenino, sossegado, onde as pessoas vão beber e comer para apreciar. Pensei para mim mesmo que este seria o sítio ideal”.
Este estudo teve também, na opinião do investigador, uma perspetiva algo incomum e importante: “às vezes fala-se que a academia e o comércio estão de costas viradas, o que é em certa medida verdade, mas este foi um interessante exemplo de união”.
Para a experiência, recrutaram clientes do bar que quisessem participar e pagavam-lhes o vinho (dois copos), já pré-selecionado; “passava-se um questionário antes de beberem, para avaliar a linha de base da consciência – tínhamos como critério de exclusão a pessoa já ter bebido alguma coisa antes ou ter tomado alguma substância –, mas muitas vezes a consciência pode já estar alterada pelo estado de excitação da participação no estudo. No fim, avalia-se como é que o efeito do vinho varia em relação à linha de base”. Originalmente, a ideia passava por só ter pessoas a beber sozinhas, para “poderem ficar mais introspetivas e sentir melhor as alterações de consciência”; no entanto, como explica Rui Costa, “há muita gente que não bebe sozinha e muita que simplesmente não é capaz de estar a beber sozinha em público”. Para algumas pessoas isto não era problema, agradecendo mesmo a “‘excelente oportunidade para estar sozinho’ – há aqueles que sofrem de solidão e outros que precisam de arranjar momentos para estarem sós”. Posto isto, “diferenciámos a amostra em três grupos: a beber sozinho, a beber a par e em grupos de três a seis pessoas”.
Nos três grupos, há duas sensações transversais: “uma certa perda de consciência das memórias, um afastamento do passado, mas também um afastamento das expectativas e dos planos, do futuro. A consciência torna-se altamente focada no momento presente” e, “a acompanhar este foco há uma perda da noção de tempo – parece que desaparece, sente-se menos o tempo a passar; ou, então, uma certa dilatação, sentir o tempo a passar muito devagar. Principalmente em estados alterados de consciência há situações em que, por vezes, o prazer se combina com esta dilatação do tempo e é muito provável que esta sensação possa ter que ver com a abertura ao momento presente: começa a entrar muita informação, o cérebro é inundado de informação e todo este processamento faz com o que o tempo passe mais devagar. Outras pessoas simplesmente esqueceram-se que o tempo existia – há, de facto, estes dois tipos de efeitos na perceção temporal.”.
Por outro lado, acrescenta Rui Costa, surgiram “mais pensamentos originais e uma certa excitação, algo que acontece na maioria das pessoas. Temos tendência a pensar no álcool como uma substância sedativa por causa do seu efeito no sistema GABAérgico; de facto, muitas pessoas dizem que têm tendência a ficar sonolentas por causa da bebida. Mas, a quem a experiência de beber é mais familiar, o álcool numa dose moderada acaba por ser excitante, como verificámos – e há literatura em neurociências que comprova que tem o potencial para ser simultaneamente calmante e excitante. Por isso é que as pessoas bebem e a seguir vão para a discoteca, o álcool tem que ter propriedades estimulantes”.
O último efeito positivo que destaca é “a sensação de proximidade com o mundo. Às vezes até é difícil falar destas coisas, toca um bocado no esotérico”. Explicado de forma muito simples, “normalmente sentimo-nos separados do mundo: eu estou aqui, o mundo está aí e as outras pessoas estão ali. Esta divisão entre o eu e o mundo pode atenuar-se em momentos de grande carga emocional e sob o efeito de uma série de substâncias psicoativas, em particular com o efeito do vinho. As pessoas relataram que se sentiam mais unas com o ambiente à volta, ou seja, a consciência de que a sua pessoa e o mundo são entidades distintas dilui-se; com isto surgiu uma sensação de estar mais próximo das coisas, e que estas são mais fascinantes – algo que também avaliámos. O mundo torna-se mais fascinante”.
Este trabalho de investigação de Rui Costa deu que falar pelo mundo, tendo sido altamente referenciado no Twitter em países como o Japão e estando no top das trends de sites noticiosos de ciência, como a New Scientist. Quais são os planos para o futuro?
“Estou muito interessado em estudar alterações na consciência provocadas por situações positivas. Trabalho na área da saúde sexual e parece que não há uma ligação entre este estudo e a minha área, mas há. Tal como no estudo do álcool, o estudo da sexualidade está muito enviesado no sentido de examinar os problemas associados, o risco de doenças, de disfunções sexuais, as correlações com a depressão e a ansiedade. Não se pensa muito em termos de ‘se há experiências sexuais boas, como é que podem ser melhores? O que é que caracteriza o excecional?’ Há uma carência de psicologia positiva na saúde sexual”.
Rui Costa conta que começou também agora “a estudar os estados alterados de consciência desencadeados pela atividade sexual, que ocorrem durante ou depois: os momentos de prazer excecional, acima do normal. Como é que se avaliam estes momentos? Usando os mesmos questionários para estados alterados de consciência que se usam no estudo dos efeitos das substâncias psicoativas. Se repararmos, o prazer sexual depende da ação em sistemas cerebrais que são, em larga medida, os mesmos onde atuam as drogas recreativas. Portanto, há um cruzamento entre os efeitos do vinho e os efeitos de uma atividade sexual excecional”.
Ainda assim, a sua ambição, conta entre risos, é maior: “gostava que houvesse mais investigação sobre os efeitos positivos do vinho, gostava que pudesse haver um novo paradigma. Ao perceber melhor estes efeitos, também podemos saber melhor como consumir o álcool; beber com consciência é mais protetor do que beber de forma automática, onde se perde o controlo do que se está a fazer. Sendo uma investigação focada nos efeitos positivos, é também uma investigação que nos pode ensinar a ganhar consciência do momento em que bebemos e isso pode também ensinar-nos a consumir melhor o álcool de modo a evitar os aspetos negativos”.
Consultem o artigo em https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0256198